A Lei nº 14.651/2023 reflete o compromisso do Brasil em harmonizar seu direito aduaneiro aos princípios constitucionais e às orientações da OMC

Por Nilton André Sales Vieira

O direito aduaneiro, pilar fundamental para a regulação do comércio exterior, tem se adaptado continuamente às demandas de um mundo globalizado. Uma das ferramentas mais discutidas e revisadas dentro deste campo é a pena de perdimento. A pena refere-se à sanção aplicada em casos de irregularidades graves, como contrabando, descaminho e falsificação de documentos. Essa penalidade culmina na perda definitiva de mercadorias, veículos ou moedas em favor da União.

Antes da Lei nº 14.651/2023, recentemente publicada, o procedimento para a aplicação da pena de perdimento concedia às partes um prazo de 20 dias para contestação. Contudo, a ausência de um mecanismo de recurso na legislação anterior era uma lacuna significativa. Essa restrição era frequentemente criticada e vista como uma violação ao devido processo legal, um direito fundamental consagrado na Constituição.

O devido processo legal serve como uma salvaguarda contra ações arbitrárias ou injustas por parte do Estado. Esse princípio reforça a confiança dos cidadãos no sistema jurídico, garantindo que a privação da propriedade ocorra somente em circunstâncias legítimas e seguindo os trâmites legais apropriados.

Vale ressaltar o contraste entre os conceitos de propriedade e perdimento: o direito constitucional de propriedade protege o direito individual de possuir e usar bens, enquanto a pena de perdimento, no âmbito aduaneiro, serve como mecanismo de controle e sanção, assegurando a observância das leis e regulamentos aduaneiros.

Esse dilema sublinha a importância de um sistema processual administrativo que esteja em consonância com a legalidade quando se trata de perdimento de bens e mercadorias.

Sob essa ótica, a Portaria MF nº 1.005/23, publicada em 28 de agosto, regulamenta a Lei nº 14.651/23. Dentre suas diversas disposições, é relevante destacar a criação do Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul), concebido como uma instância de julgamento de recursos administrativos. Embora represente um a vanço significativo em direção ao devido processo legal, sua composição limita-se a representantes da Receita Federal.

Esse aspecto merece reflexão. A Convenção de Quioto Revisada (CQR), um instrumento internacional criado pela Organização Mundial das Aduanas (OMA) com o objetivo de padronizar e simplificar procedimentos aduaneiros, enfatiza a importância de recorrer a uma autoridade independente da administração aduaneira em casos de indeferimento de um requerimento.

A configuração atual do Cejul sugere que o Brasil pode não estar em total conformidade com as diretrizes da CQR/OMA. Essa observação ganha destaque quando consideramos que o propósito central da referida lei é consolidar a confiança no sistema responsável pela aplicação da pena de perdimento.

A adoção de sessões de julgamento não presenciais, seja por videoconferência ou em ambientes virtuais, conforme previsto no artigo 40 da Portaria MF nº 1.005/23, é uma inovação significativa que reflete a necessidade de adaptação ao cenário atual.

É importante destacar também a Portaria RFB nº 348, de 1º de setembro, que, ao regulamentar o funcionamento do Cejul, estabelecido pela Portaria MF nº 1.005/23, introduz a opção de sustentação oral nas sessões de julgamento por meio do envio de vídeos de até 10 minutos. Tais medidas, ao otimizar a logística e eliminar obstáculos geográficos, contribuem para a redução de custos e garantem maior rapidez e eficiência nos julgamentos.

Além disso, a Portaria MF nº 1.005/23 determinou prazos específicos, de 90 dias, para a emissão de decisões ou para a inclusão de processos em pauta, conforme descrito no artigo 41. Estipulando um intervalo de tempo adequado para deliberações, combate-se a lentidão processual e assegura-se a celeridade na análise dos casos, favorecendo todos os interessados.

A rapidez nos procedimentos, mais do que um direito das partes envolvidas, sinaliza a contemporaneidade e a capacidade de adaptação do sistema de justiça à realidade vigente.

Outro artigo da Portaria MF 1.005/23, de nº 39, representa um marco progressivo. Ele estabelece a obrigatoriedade de divulgar o ementário dos acórdãos no site oficial da Receita Federal, democratizando e ampliando o acesso à informação. Com isso, decisões que anteriormente eram de difícil consulta agora estarão centralizadas em uma única plataforma.

Essa centralização simplifica a busca e análise para contribuintes e especialistas, garantindo também uniformidade nas decisões do Cejul, ao criar um registro transparente de precedentes. A clareza nas informações não apenas reforça a confiança no sistema, mas também evidencia o comprometimento da Receita Federal em ser transparente e responsável, fortalecendo sua relação com os contribuintes.

A Lei nº 14.651/2023 reflete o compromisso do Brasil em harmonizar seu direito aduaneiro aos princípios constitucionais e às orientações da Organização Mundial do Comércio (OMC). Ela enfatiza a importância do devido processo legal, da agilidade processual e da transparência nas decisões.

Fonte: Valor Econômico

 

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